40 anos da democracia. Sarney: “Sem Constituição, não haveria transição”

Em uma conversa com as repórteres Denise Rothenburg, Ana Dubeux e Carlos Alexandre de Souza – do jornal Correio Brasiliense -, o primeiro presidente civil após a ditadura relata sua dedicação para guiar a nação em direção à redemocratização. Como vice de Tancredo Neves, ele tomou posse no Palácio do Planalto em um momento de profundas divisões e instabilidade política.

 

 

Com 94 anos, o ex-presidente José Sarney terá uma razão singular em 2025 para destacar sua trajetória ímpar na política do Brasil. No dia 15 de março, celebra-se o quadragésimo aniversário de um momento impactante na história do país: sua ascensão à presidência da República.

Na noite anterior, o presidente eleito, Tancredo Neves, passou por uma operação de urgência no Hospital de Base de Brasília. Para Sarney, aquele período foi crucial para a democracia brasileira que começava a se restabelecer. “Enfrentei desafios quase impossíveis“, recorda o ex-presidente em uma conversa com o Correio. Uma das questões mais sensíveis era a relação com os militares.

Sarney recorda de duas figuras significativas nesse percurso: Leônidas Pires, descrito como “o melhor ministro da Guerra que já tivemos”, e Ulysses Guimarães. Sobre este último, o ex-presidente destaca a solicitação clara para a aprovação de uma nova Constituição, em um contexto de pressões institucionais.

“Ulysses, na ausência de uma Constituição, não possui um processo de transição, uma vez que é a Constituição que define essa mudança“, afirmou Sarney na ocasião.

Memórias desse tipo são as que, conforme Sarney, embasam uma celebração vigorosa de 40 anos de democracia contínua. “Estamos em uma trajetória sem volta“.

A seguir, confira os principais pontos da entrevista e assista no canal do Correio no YouTube.

 

 

Olhando toda a sua trajetória até aqui, como enxerga o Brasil de hoje?

Em primeiro lugar, eu, que sou um homem religioso, sou possuído de uma grande gratidão pela graça da vida que Deus me deu. Então, todos os dias, nas minhas orações, de manhã e de noite, a primeira coisa é agradecer. Vejo o Brasil com otimismo. Muitas vezes, todos nós temos certas dúvidas sobre o destino do país. E até começamos a duvidar daquela expressão usada por Stefan Zweig, que escreveu o livro “Brasil, o país do futuro”. Parece que é difícil a gente responder isso, quando a gente vê que ficamos muito atrasados na área de tecnologia. Tomamos uma decisão errada, de esperar sermos autossuficientes nessa matéria. O resultado é que nos atrasamos grandemente. Agora estamos verificando todo o mundo preocupado com a inteligência artificial, que é realmente o grande instrumento de mudança da civilização.

 

E onde estão os avanços?

Nós já resolvemos alguns dos problemas mais difíceis que os países mais desenvolvidos não resolveram. Não temos problema de raça, de fronteiras, de religião, não temos problemas que significam grandes divisões da sociedade, coisa que países como os Estados Unidos, como a Europa, de uma maneira global, ainda não resolveram. E agora eles têm os problemas da imigração em massa. E o Brasil não tem esses problemas. Por outro lado, nós somos o continente que ainda não teve os seus anos dourados. Assistimos aos anos dourados da Europa, aos anos dourados da Ásia e, sem dúvida nenhuma, nós vamos assistir aos anos dourados da América do Sul.

 

Estamos completando 40 anos de democracia, mas entramos em uma profunda polarização política. Como sair desse redemoinho?

Quando estive com Deng Xiaoping (o líder supremo da República Popular da China entre 1978 e 1992), perguntei: “Como o senhor vê os 50 anos futuros da humanidade?” E ele me respondeu: “Os senhores, do Ocidente, não sabem o que é o tempo. Nós aqui sabemos o que é o tempo”. Eu digo, evidentemente. Os chineses têm 6.000 anos de civilização e quase todas as conquistas. Nós tivemos algumas. Essa é uma coisa que eu aprendi com ele.

 

O que isso traz para o contexto brasileiro?

A gente precisa ter a perspectiva do tempo. Nós tivemos 40 anos de democracia, estamos celebrando este ano a nossa volta ao regime democrático. E criamos instituições tão fortes que elas resistiram a dois impeachments e a uma tentativa de mudança de regime, como estamos vendo na apuração que está sendo feita pelo Supremo Tribunal Federal. Estamos num caminho irreversível. Nós não teremos mais, de maneira alguma, tipos de ações que nós tivemos. Acho até que os presidentes não sofrerão essas tentativas permanentes de golpe. Mas, para isso, temos um encontro marcado com uma mudança política profunda que no Brasil ainda não ocorreu. Temos que fazer essa reforma, que é muito difícil.

Qual reforma?

Uma reforma de caráter eleitoral, de caráter do próprio regime e com as experiências que tivemos. Precisamos evitar essas constantes instabilidades políticas que nós temos. E isso é muito da Constituição de 1988, que eu acho muito boa nos capítulos dos Direitos Humanos e dos Direitos Individuais e dos Direitos Sociais. Mas há alguns pontos que precisamos ver. Por um lado, essa capacidade de alterar a Constituição de modo mais rápida do que fazer um projeto de lei. Nós já temos cento e tantas emendas constitucionais. Por outro lado, há a judicialização da política, no momento que a Constituição permite que todo mundo, a toda hora, faça uma proposta de inconstitucionalidade. E o Supremo vive abarrotado dessas propostas de inconstitucionalidade.

 

Qual a consequência dessa disfuncionalidade?

Essa judicialização da política nos leva à politização da Justiça. Se nós levamos aos tribunais questões políticas para eles resolverem, evidentemente eles vão se habituando, como se habituaram, a resolver questões políticas. E daí, muitas vezes, podem cometer excessos que são muitas vezes apontados. Ultimamente, nós temos visto isso. E também a política deixa de ser um processo normal, para ser um processo de apelo cotidiano ao Judiciário, para que ele possa resolver o que, em um regime normal, se lida dentro dos partidos políticos.

 

Mas há problemas nos partidos.

De fato. Eles não têm democracia interna. Nós não temos vivência de partidos políticos. Basta dizer que é de 1946, a Lei Agamenon Magalhães, que nós voltamos a ter partidos nacionais. Antes, nós tínhamos partidos estaduais. Isso provocou um atraso muito grande em relação a países como Chile, Argentina, Uruguai. Eles têm partidos centenários, há uma grande vivência partidária e, por consequência, a formação de lideranças. Nós, sem tradição partidária, não temos formação de lideranças. E hoje estamos sentindo essa falta.

 

 

A ditadura também contribuiu para esse cenário.

A coisa pior que a revolução fez, sob o ponto de vista político, foi a extinção dos partidos. Porque, bem ou mal, eles eram uma escola de formação de liderança. E com essa extinção, queria estabelecer dois partidos por decreto, o Arena e o MDB. Sabemos que isso não existe. Por decreto não se cria, como não se resolve por decreto a inflação, também não se resolve por decreto a formação de liderança.

 

O senhor diz que é preciso uma mudança política radical. O que funcionaria melhor?

Sou partidário do parlamentarismo. Eu propus, na Constituinte, que o último ano meu fosse dedicado à preparação do país para o parlamentarismo moderado.

 

O semipresidencialismo?

Eu digo semiparlamentarismo (Risos). Porque o presidencialismo só funcionou em países muito ricos. No resto, não tem funcionado bem. Acho que o voto uninominal é responsável por essa bagunça da fidelidade política, né? Porque, quando se sai de uma eleição, os adversários são aqueles que participam do partido, da legenda. São eles que disputam entre eles mesmos. Não é uma disputa entre partidos, é uma disputa intrapartidos. Isso é uma coisa que tem que acabar. Eu sou partidário de termos o voto distrital, quer dizer, misto. Que aquele que uma parte parlamentarista e outra parte proporcional. Pode votar na lista ou o termo de escolha também dos candidatos, pela votação que esses candidatos majoritários obtiveram que se conta como legenda.

 

E como se deu essa discussão sobre o parlamentarismo à época?

Durante o tempo da Constituinte, eu tive que sustentar o presidencialismo, porque não era parlamentarismo o que eles queriam. Eles queriam era um ano do meu mandato. Por quê? Porque tinham feito uma montagem da comissão de sistematização na qual só podia ser derrubado o projeto da comissão se houvesse dois terços do plenário. Esse era o golpe. Ora, isso era impossível.

 

E o que aconteceu?

Quando esse projeto chegou ao plenário, o Congresso ficou 30 dias sem poder votar, porque todo mundo derrubava. Então Ulysses me procurou e disse: “Sarney, você precisa me ajudar. Não vai ter Constituição”. E eu respondi: “Ulysses, sem Constituição, não tem transição, porque a Constituição é que vai marcar a transição. Nós não podemos ficar com uma transição democrática que deixa uma emenda constitucional que nos regula, cujo preâmbulo é esse: ‘O ministro do Exército, da Marinha e da Aeronáutica decretam a seguinte emenda constitucional.’ Isso é impossível. Então, vamos fazer uma coisa conjunta, para que possamos aprovar a Constituição”. E nós aprovamos a Constituição, que eu tive o orgulho de ser o primeiro a jurar defender. E fui o primeiro também a ter condições de começar a implantá-la, o que não foi fácil. Foi muito difícil.

 

Qual foi o momento mais difícil da transição?

Eu enfrentei alguns problemas que consideravam quase intransponíveis. Em primeiro lugar, o problema dos militares. A anistia tinha sido feita, eu tinha participado da elaboração da lei com Petrônio (Portela), com Franco Montoro, com Ulysses, com todos. Ela foi a base pela qual nós pudemos fazer o projeto de engenharia política que nos levou à transição. E, na anistia, as Forças Armadas queriam que nós fizéssemos para os dois lados. A oposição tinha uma resistência muito grande, achava que a anistia devia ser só para o lado civil. O Petrônio nesse ponto negociou bem. O (Ernesto) Geisel participou disso, eu participei também. Com isso, nós pacificamos toda a área das Forças Armadas.

 

Como era a relação com os militares naquele tempo?

Logo no princípio do governo, fiquei sabendo que 70% dos militares ainda tinham muita restrição a meu respeito. Eles achavam, com o (general João Baptista) Figueiredo à frente, que eu os havia abandonado. Na realidade, foi o contrário. Eu estabeleci duas diretrizes em relação às Forças Armadas. Primeiro, que sendo eu o comandante-em-chefe, eu que zelaria por elas. Não queria mais aquelas manifestações de ordem do dia com mensagens subliminares. E, ao mesmo tempo, estabeleci que a transição seria feita com as Forças Armadas e não contra as Forças Armadas. Quer dizer, elas deveriam colaborar no processo de transição democrática. E realmente colaboraram. Com isso, nós voltamos as Forças Armadas aos quartéis. Demos a elas a função que eu disse a Leônidas (Pires) — aliás, o melhor ministro do Exército que já tivemos: “Leônidas, você tem que dar o que eles têm que fazer”. E o Leônidas, então, resolveu modernizar o Exército. E as Forças Armadas se dedicaram a essa função e abandonaram aquela coisa de, não tendo que fazer, buscavam a política, na qual elas se metiam. E essa coisa foi tão forte que, nós vemos, nos últimos episódios, que foram as Forças Armadas que realmente repeliram qualquer mudança ou intromissão no regime.

 

O senhor está falando agora dos fatos de 2022?

Sim, estou falando dos últimos fatos, de 2022, e também alguns fatos durante o meu governo. Que hoje aqui eu não quero de maneira nenhuma revelar. Tem muita gente que já morreu e tem muita gente que está viva. Houve tentativas, que foram bastante…

 

E o senhor contou com o apoio de quem?

Contei com apoio das Forças Armadas que não participavam disso. Uma vez o ministro Leônidas — e isso é uma revelação que eu vou fazer vocês —, me chamou e me disse que alguns civis — eu não quero dizer o nome, nem vou dizer, guardo até hoje — o estavam procurando para que ele convocasse eleições gerais. De modo que eles me forçariam a renunciar ou a ser deposto. Leônidas, depois de algum tempo, me procurou e disse: “Olha, eles estão me procurando para fazer isso e eu não vou recebê-los mais lá. É uma conversa na que eles estão querendo avançar e que não me agrada”. Eu disse: “Não, Leônidas, você faz o seguinte: ouve até o fim. Não sai, porque senão eles vão procurar outro general, que vai aderir a eles e vai nos criar caso”. E aí Leônidas cortou todos eles.

 

Ele teve um papel importante nesse processo todo.

Sim, um papel importante nesse processo todo. Foi uma transição muito difícil. Vocês hão de recordar que eu soube que ia assumir a Presidência às 3 horas da manhã do dia 15. Não tinha participado da escolha do governo. Todos os ministros foram escolhidos pelo Tancredo Neves. Muitos eu nem conhecia. Eu não tinha participado da elaboração do programa de governo. E por iniciativa mesmo minha, eu não tinha querido participar da escolha de qualquer auxiliar do governo: ‘Eu quero ser um vice-presidente fraco de um presidente forte’.

 

E o que o senhor fez?

Fiz o que tinha de fazer: me legitimar. Para me legitimar, abri todas as frentes. Fiz a anistia para todos os sindicalistas todos — que atingiu o Lula, atingiu a todos aqueles daquele tempo. A partir dali, os sindicatos não precisavam mais do ministério para fazer. Resgatei os partidos que estavam na clandestinidade, permiti eleições para todos os municípios e eleição para as capitais. Já naquele ano. Até o Ulysses me procurou: “Ô, Sarney como é que vamos fazer eleição com esses problemas todos?” Eu disse: “Ulysses, Tancredo podia retardar porque ele tinha um capital político muito grande. Mas eu estou em processo de legitimação e tenho que fazer imediatamente isso. E vou fazer porque eu acho que a minha convicção é de que se deve fazer imediatamente”.

 

Ou seja, havia um sentido de urgência na instalação da democracia?

Havia uma urgência e uma resistência muito grande, também, dos Autênticos (Autênticos do PMDB, ala do partido que defendia uma punição mais rigorosa aos militares). Era uma pressão muito grande sobre mim. Ulysses veio falar comigo: ‘Você dá um sinal a eles’. Eu respondi: ‘Nessa coisa, Ulysses, ninguém pode dar sinal. Nós não ganhamos através das armas. Nós ganhamos por um processo de negociação, um processo de engenharia política e, portanto, nós temos é que realmente atender (às demandas dos militares). Nós não temos armas para dar sinal. Nós somos civis, e o Brasil é uma construção civil. Basta ver que, logo depois da Independência, a primeira coisa que nos preocupamos em fazer foi uma Constituição. Para ter uma monarquia constitucional.

 

O senhor chegou a dizer que a Constituição deixaria o país ingovernável. Como avalia hoje?

Fiz isso no processo de nós marcharmos para fazer uma Constituição. Aqueles excessos que estavam sendo feitos foram corrigidos. Eram os processos vindos da comissão de sistematização e que alguns sobreviveram dentro do texto constitucional. Nós ainda temos 200 e poucas emendas constitucionais previstas dentro da Constituição. Que absurdo, né?

 

O senhor foi a maior autoridade do país e presidente do Senado por três vezes. Como enxerga o desgaste entre o Executivo e o Legislativo em relação às emendas?

Isso é falta de ampliar o diálogo. E falta também de lideranças que se imponham à classe política. Essas lideranças que estão surgindo, participando do processo, de certo modo, são novas, ainda não têm uma grande experiência. Então, os velhos continuam a ser imprescindíveis. (Risos)

 

A nossa democracia sofreu riscos lá atrás. Ela ainda sofre? Está consolidada?

A democracia é um processo de consciência de cada um de nós. Nesse processo, o que a democracia traz, em primeiro lugar, é a liberdade. O coração da democracia é a liberdade. Quando ela traz a liberdade, ela tem um poder criativo que faz com que existam parlamentos, instituições fortes, que só podem existir num processo de liberdade. É aquela definição do Churchill de que a democracia é um regime muito ruim, mas não há outro melhor. Tem outra dele que acho mais precisa, relativa à democracia como o regime da liberdade: quando batem na sua casa às 6 horas da manhã, você tem absoluta tranquilidade de que é o leiteiro ou o padeiro. Nunca é a polícia.

 

O que pensa da denúncia da Procuradoria Geral da República contra acusados de promover um golpe contra a democracia?

Isso é uma demonstração da democracia. É um processo que está correndo na Justiça, naturalmente, os acusados terão o direito de defesa. Agora, eu me choco, sob o ponto de vista humano e político, dessa coisa inacreditável de assassinato do presidente, do vice-presidente e de um ministro do Supremo Tribunal Federal. É o que eu disse. Desde que as Forças Armadas voltaram aos quartéis, dedicaram-se às atribuições que tinham, elas não respaldarão jamais um processo de queda do regime democrático. Nós instituímos o regime democrático e estamos num processo de consolidação e já atravessando muitos casos difíceis, como os de impeachment.

 

Ou seja, a nossa democracia passou no teste.

Não no teste, ela passou na estrutura.

 

 

O 8 de janeiro foi um dos piores momentos para o Brasil?

Aquilo foi uma coisa lamentável, terrível, que chocou a todos nós. Mas eu acho que, estruturalmente, não foi o momento mais difícil que nós tivemos. Os momentos mais difíceis foram realmente os processos do Collor — o da Dilma não, que foi um processo meio forçado. O processo do Collor foi difícil porque vinha logo da saída da transição. Ele tinha me atacado muito, e os nossos índices econômicos não tinham sido bons naquele momento. Então, foi muito difícil. Outro momento difícil foi fazer as eleições presidenciais naquele tempo que o Lula ganhou a eleição. A meu ver, foi muito mais sério do que esse problema atual. Nesse episódio do 8 de janeiro, de certo modo, eles começaram por uma baderna. Os outros problemas nasciam na parte estrutural das lideranças do país.

 

E sobre a anistia aos neogolpistas?

Esse é um problema do Congresso. De avaliação política, vamos dizer, eu já estou na fase de garantias, né? (Risos)

 

Mas tem gente que diz: “Se não tiver anistia, não tem pacificação do país”. E outros dizem que, com anistia, aí é que haverá guerra. Haverá guerra mesmo?

Esse processo de enfrentamento é deformado, mas faz parte da própria democracia — que tem seus problemas. Vejam vocês agora os Estados Unidos. Que problema eles estão vivendo com o Trump, né? Problemão.

 

O Trump vai ajudar Bolsonaro nesses processos aqui do Brasil?

O Trump tem uma personalidade de prejudicar os personagens do mundo. Nunca ele se envolveu em ajudá-los. Nem os aliados dele, que são ocasionais.

 

O que vem pela frente com Donald Trump, que, em um mês, já botou o mundo meio que de cabeça para baixo?

Nunca pensei que os Estados Unidos tivessem um presidente ou chegassem a um momento em que eles também tivessem um movimento popular de invadir o Congresso para forçar o não reconhecimento pelo Senado Federal do presidente da República, conforme a Constituição americana. Era uma coisa que eu jamais podia pensar. Entretanto, fizeram. E nós estamos com um presidente da República condenado em processo judicial. E a própria sociedade americana no momento já está colocando Trump como rei.

 

No seu artigo publicado sexta-feira no Correio, o senhor fala de ódio. Ódio, não.

Evidentemente, porque a gente vê no país uma radicalização inaceitável. O Brasil não é para isso. O brasileiro cordial, que se falou tanto, está na raiz do Brasil. Nós não temos vocação para esse radicalismo. Ele é antiBrasil.

 

Mas está difícil sair desse radicalismo, hein?

Eu volto ao Deng Xiaoping. O tempo vai nos tirar do radicalismo, e esses grupos vão ver que isso não leva a nada. E terão de aparecer líderes que vão se formar no Brasil.

 

Mas o senhor já enxerga essas lideranças novas?

Elas podem crescer, se afirmar e se projetar em termos de futuro. Eu vivi um período áureo de lideranças. Graças a elas, eu vi, ao longo do tempo, nós atravessarmos problemas como o suicídio de Getúlio, a renúncia do Jânio, a posse do Jango. Em tudo isso, eu participei como assistente algumas vezes, outras vezes como testemunha, e outras como protagonista até.

 

Como avalia o terceiro mandato do Lula? Ele já esteve com o senhor?

O Lula, e eu o apoiei por isso, foi o primeiro presidente operário no Brasil. Não podemos mais nos queixar sobre os elitistas. Tivemos general, tivemos advogados, médicos, sociólogo, tivemos todo mundo. E tivemos um operário. Eu achei que isso coroava o regime e a transição que nós tivemos para a democracia. Eu fiz uma amizade com ele que, hoje, não é quase política, é pessoal. Porque velho gosta de consideração, e ele tem muita consideração comigo. Eu disse a ele: “Presidente Lula, velho gosta de agrado e gosta de ser bem tratado. O senhor não precisa mais (de mim como político), não tenho mais ingerência nenhuma”.

 

O senhor, inclusive, o acompanhou depois que ele passou a faixa presidencial para Dilma Rousseff.

Foi uma demonstração de amizade e de reconhecimento pelo governo que ele tinha feito. Ele pacificou o país.

 

Que diferença o senhor vê entre o Lula do primeiro mandato, do segundo e do atual?

Olha, Denise, você vai me desculpar, mas eu não vou fazer julgamento. Essa pergunta é mais contra mim do que contra o Lula. (Risos)

 

Voltando a 1985. Qual é a lembrança mais forte daqueles dias históricos?

Eu tenho uma lembrança muito forte da grande figura do Tancredo Neves. Porque foi ele que possibilitou a transição democrática. Ele foi escolhido candidato porque não se chocava com a área militar nem com os grupos políticos opositores a ele. Então ele possibilitou que se fizesse essa união.

 

O senhor se recorda de algum episódio particular?

Quando participamos da escolha do Tancredo para a presidência, o processo passava pelo Aureliano Chaves (então vice-presidente da República), que era seu adversário em Minas Gerais. Quando eu, o Jorge Bornhausen e o Marco Maciel fomos ao Aureliano, ele disse: Eu quero uma carta do Tancredo, se comprometendo comigo. Porque eu conheço o Tancredo de Minas Gerais, etc”. Aí eu, pelo menos, disse: a coisa está perdida, não vamos fazer porque o presidente Tancredo não vai querer fazer carta.

 

E o que aconteceu?

Quando chegamos no Tancredo, fomos surpreendidos. Ele disse: “Oh, mas Aureliano sabe, eu vou fazer imediatamente a carta. Aureliano deve saber que nós, em Minas, só fazemos uma carta quando recebemos a resposta antes”. (Risos) Esse era o Tancredo, né? E ele fez uma carta muito boa e que não dizia nada. (Risos). E Aureliano não nos mostrou a carta; quem nos mostrou foi o próprio Tancredo. Ele era um grande homem, um estadista. Ele não transigia em princípios, mas em mecanismos de superação, em processos, ele era muito capaz.

 

Por quê?

Há uma coisa que acho formidável no Tancredo, que mostra como ele era. Na morte do Getúlio, ele chorava no túmulo do presidente e fez um discurso. Mas não foi um discurso de vingança, como foram todos os outros naquele tempo. Ele disse: “Que o sangue do presidente não seja uma divisão do Brasil. Que esse gesto não divida o Brasil”. Então, ele mostra o conciliador que sempre foi.

 

Quando foi a última conversa com Tancredo?

A última foi com o Aureliano Chaves e Marco Marcel. Aureliano me telefonou para que nós fôssemos lá, porque ele queria indicar um nome para a Eletrobras. E o Tancredo já tinha escolhido o nome do Bhering (Mario Penna Bhering), que era diretor presidente da Companhia de Energia de Minas Gerais — aliás, um homem extraordinário. Ele pintou aquela aquarela ali (Sarney aponta para o quadro na sala de estar). Bonita, né?

 

E o que houve?

O Aureliano chegou e falou: “Tancredo, eu vim aqui propor…”. Aí o Tancredo respondeu, batendo na minha perna – eu estava do lado dele: “Aureliano, eu já escolhi Mario Bhering para presidente da Eletrobras”. Aí, Aureliano disse: “Surpresa nossa, né?” Porque Aureliano era também um homem de temperamento forte. Aí, ele disse: “Tancredo, você é o presidente. Se você fez essa escolha, está feita”. Saímos eu e Aureliano. Na saída, Tancredo me disse uma única coisa: “Eu estou dizendo que estou com problema de garganta, para que esses jornalistas não me persigam”. Eles estavam na porta. E assim era o Tancredo. Ele tinha muitos gestos de conciliação, mas ele não transigia das coisas que ele achava que eram de sua atribuição.

 

E com os militares?

Também conversei muito com ele sobre o problema de nós pacificarmos a área militar. E ele também estava de acordo. Ele tinha colocado o comandante em Minas Gerais e pedido ao Geisel para indicar o nome do SNI. Então, ele tinha tido o cuidado de cobrir essas áreas todas.

 

Ele também estava preocupado com os militares?

Sim. Aliás, era muito justo. Por aí era que passaria a nossa transição. Nós teríamos que ter o apoio deles para poder atravessar os problemas que eu tive que enfrentar, e não o Tancredo. Essa dificuldade caiu no meu colo.

 

Quando foi que o senhor caiu na real?

Quando eu tive que ser o presidente da República. Eu nunca pensei nisso. No Maranhão, quando se nasce, se pede ‘Academia”. As parteiras até já conhecem, os meninos choram ‘Academia’, e não a presidência, né? De repente, eu era o presidente da República. Isso me fazia profundamente perplexo. Quando me comunicaram a morte do Tancredo, eu saí para chorar e orar.

 

Como foi conviver com ministros que o senhor não tinha escolhido?

Eu encarnei o próprio Tancredo. Comecei a dialogar.

 

Por que se deve comemorar a redemocratização?

Nós devemos comemorar. Eu, inclusive, disse ao presidente Lula sobre os 40 anos de democracia. É o maior período de democracia que já tivemos sem nenhum hiato. Devíamos fazer uma comemoração grande, porque essa comemoração fortifica a democracia. Não é uma comemoração por comemorar. Nós devemos ficar felizes porque estamos chegando aos 40 anos. Mas, ao mesmo tempo, isso significa que nós estamos pedindo ao povo brasileiro, à história, a tudo, a continuidade do regime democrático e as excelências desse regime.

 

Falou com mais alguém?

Também falei com o presidente da Câmara de que devíamos ter comemorações nesse sentido. Eles me convidaram para uma comemoração muito grande no Panteão da Pátria, que vai ser feita pela Fundação Astrojildo Pereira.

 

Como o senhor espera ser julgado pela História?

Eu acho que o meu lugar é o daquele homem que foi surpreendido pela morte do Tancredo e conseguiu transmitir ao Brasil a consolidação do regime democrático. Acho que, nesse ponto, eu tenho uma grande participação. O meu temperamento e a minha formação intelectual ajudaram o Brasil naquele momento. Atravessei todos os instantes procurando fazer essa transição, sabendo o que ela significava para o Brasil. Eu tenho, de certo modo, algum conhecimento de História. Tinha vivido muito a experiência, participei de muitos governos, tinha enfrentado muitos problemas. Então, eu julgava que sabia o que ia enfrentar. Estava preparado para isso.

 

O que o senhor fez?

Aí, eu fiz o Plano Cruzado, que não era apenas um plano econômico, era também um plano político. Sem o Plano Cruzado, não teríamos levado a Câmara, o Senado e os governadores a dar suporte a uma Constituinte. Fazer uma constituinte numa transição democrática é uma coisa que não se viu em lugar nenhum do mundo. Nenhum país da América Latina fez. E nós proporcionamos isso. Eu e o Alfonsín (Raúl Alfonsín, ex-presidente da Argentina), com o Mercosul, exigimos a cláusula democrática. Além de Portugal e Grécia, foram transições democráticas muito visíveis naquele tempo.

 

O senhor recebeu muitas críticas em vários momentos. Essas críticas todas eram destinadas à sucessão presidencial.

Nós tínhamos muitos candidatos: Brizola, Covas, Fernando Henrique, Montoro, Ulysses. Esses candidatos todos estavam querendo que tivéssemos a eleição logo, o mais rápido possível. Eles estavam interessados em apressar a eleição, enquanto eu e Ulysses, preocupados com a transição democrática. Por isso que, de certo modo, ele julgava que no momento em que proclamasse a Constituição, o povo brasileiro iria reconhecê-lo. Tanto que o Collor uma vez chegou a ele e disse: “Dr. Ulysses, o senhor não acha que eu posso ser seu vice-presidente?” Ulysses respondeu: “Cresça e apareça”.  (Fotos:  Cadu Ibarra/CB/DA Press)

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