Henrique Acker (correspondente internacional) – Guerra civil? Disputa pelo poder? Conflito interno sobre os rumos da guerra da Ucrânia? O que terá levado Yevgueni Prigozhin, líder do Grupo Wagner, a mobilizar seus comandados em direção a Moscou, em 25 de junho?
Em pleno conflito militar que contrapõe a Rússia à Otan, os EUA e a União Europeia, o regime de Vladimir Putin (24 anos no governo) enfrenta uma crise que expõe o intestino grosso do que se transformou o governo Putin e seus asseclas, conhecidos como “oligarcas”.
A julgar pelas acusações de “corruptos”, “burocratas” e “preguiçosos” que Prigozhin levanta contra os generais Sergei Shoigu e Valery Gerasimov, chefes do Exército da Rússia, amplamente divulgadas nas redes sociais, a origem do levante do Grupo Wagner está na disputa de influência e de recursos do Ministério da Defesa.
Apesar de expor as entranhas da luta pelo financiamento militar do Estado russo a grupos de mercenários – o que acontece também em países da África e na Síria – o motim de 25 de junho escancara a forma como Putin procura controlar seus comandados, incentivando uma espécie de rivalidade que o protege como alvo direto numa possível disputa pelo poder.
O estopim da crise
Analistas militares sempre questionaram a importância da batalha de Bakhmut, uma cidade fantasma e em ruínas depois de meses de bombardeios e abandono. Ocorre que Prigozhin já acusou os comandantes do Exército russo de roubar o crédito por outras vitórias que ele atribuiu ao Grupo Wagner, como na cidade de Soledar.
Para Prigozhin, a conquista de Bakhmut foi uma demonstração de força diante da cúpula militar russa, a quem acusou de boicote e de não enviar munição para seus combatentes. Foi também uma excelente propaganda para si e o seu grupo – ao qual ele atribui a alcunha de “patriota” – junto à opinião pública russa,
Estranhamente, logo após a conquista de Bakhmut, Prigozhin anunciava a retirada de seus comandados da frente de batalha e o governo russo já admitia a substituição do Grupo Wagner por cerca de 20 mil “voluntários” chechenos, comandados por Ramzán Kadirov.
Prigozhin se enfureceu, dizendo que a guerra na Ucrânia nada mais era do que uma desculpa para Shoigu ganhar mais medalhas e obter a honra militar final de ser promovido ao posto de Marechal. “O Ministério da Defesa está tentando enganar o público, enganar o presidente”, declarou num vídeo no Telegram.
Parceria Público Privada com mercenários
Diante da fúria dos pronunciamentos desbocados de Prigozhin, o general Shoigu traçou um plano para reduzir a influência do líder do Grupo Wagner e seus comandados. O projeto consiste na assinatura de contratos das “formações de voluntários” diretamente com o Ministério da Defesa da Rússia, integrando-as nas estruturas militares e conferindo-lhes um novo estatuto jurídico.
Prigozhin respondeu com firmeza: “Wagner não vai assinar nenhum contrato com Shoigu. Shoigu não consegue administrar adequadamente a formação militar.”
O projeto de lei dava às Formações de Voluntários (milícias) até 1º de julho para cumprir e assinar os contratos. É o que explica a fúria de Prigozhin e a cartada que ele jogou em 25 de junho.
Exército regular ou milícias privadas?
O acordo selado entre o governo Putin e o comandante do Grupo Wagner, no final da tarde do mesmo 25 de junho, prevê que em troca da retirada dos mercenários o Estado russo não processará Prigozhin nem os que participaram da tomada da cidade de Rostov e do levante armado. Nos bastidores há rumores de um possível afastamento de parte da atual cúpula das Forças Armadas da Rússia, o que ainda não está confirmado.
O acordo foi mediado pelo antigo aliado de Putin, Alexander Lukashenko, Presidente da Bielorússia, país no qual Prigozhin teria se refugiado.
Não está claro se Prigozhin terá permissão para reter sua enorme riqueza. A mídia russa informou que cerca de US$ 48 milhões em dinheiro foram encontrados durante uma batida na sede do Grupo Wagner, em São Petersburgo, recursos que, segundo o próprio Prigozhin, seriam usados para indenizar as famílias dos combatentes mortos.
No entanto, as condições que deram origem ao motim permanecem. Cerca de dez empresas militares privadas operam agora na Rússia, com sua lealdade pertencente a um grupo de oficiais de segurança, gigantes do petróleo e oligarcas. Sem contar os grupos paramilitares contratados pelo governo Putin para atuar na África e na Síria.
O general Shoigu supostamente controla sua própria empresa, chamada Patriot PMC, que também opera na Ucrânia e está em concorrência direta com Wagner, de acordo com o Departamento de Estado dos EUA.
O que está em jogo na guerra da Ucrânia?
O episódio do levante do Grupo Wagner, em 25 de junho, ao contrário de revelar qualquer disputa político-ideológica pelo poder na Rússia, demonstra a degradação do regime de Vladimir Putin e de seus aliados, os chamados “oligarcas”.
Trata-se de uma classe dominante que reúne parte do que restou da antiga polícia política (KGB), ex-dirigentes do antigo Partido Comunista convertidos em homens de negócios, e uma nova geração de grandes empresários mafiosos, beneficiários do espólio das grandes empresas estatais privatizadas após o fim da URSS. Todos agarrados ao velho nacionalismo pan-russo.
Do outro lado da trincheira está um regime ultranacionalista, que flerta com o fascismo, apoiado pelas grandes potências ocidentais.
Russos e ucranianos são hoje apenas a ponta-de-lança da tragédia da guerra, cujos verdadeiros interesses estão na disputa entre o capitalismo financeirizado dos EUA e União Europeia, de um lado, e o capitalismo high tech, de produção de mercadorias em larga escala do chamado “modelo chinês”, de outro.
Os governos de Moscou e Kiev estão longe de representar regimes políticos que assegurem conquistas sociais, democracia e liberdade. Daí porque, não é de se estranhar que nenhum dos lados tenha qualquer empenho na busca de um cessar-fogo e da paz.
Por Henrique Acker (correspondente internacional)